[News] Joyce, Leila Pinheiro,Moska, Celso Fonseca, Jane Duboc e Luciana Alves dão vida à bossa russa de Oleg Tumanov

Bastaram pouco mais de sete anos de produção de canções e da invenção de um jeito de cantar, tocar, arranjar e escrever letra – vamos dizer que entre setembro de 1956, estreia da tragédia musical carioca “Orfeu da Conceição” no Teatro Municipal, até o Golpe Militar de abril de 1964 – para que a república democrática brasileira erigisse um Império Musical.

“Um império musical, um dos maiores do mundo”. É assim que o pianista e compositor russo Oleg Tumanov define o Brasil nas linhas em que apresenta este seu novo disco brasileiro, “On The Way From Brazil”. Não é preciso dizer que de império, os russos entendem: o seu, fundado por Pedro, o Grande no início do século XVIII duraria mais de dois séculos, isso depois de mil anos de História. No Mundo Novo, com pouco mais de 450 anos de não menos trágica História, filhos mais sofridos desta terra, os descendentes livres dos negros escravizados criaram o que de mais sensível e imenso o Brasil produziu: o samba. E, a partir dele, quando se começou a perceber que o país enfim se desenvolvia e tornava-se mais aberto e justo a todos, achou-se o momento de  espalhá-lo pelo mundo, sob o nome de Bossa Nova, como a grande contribuição brasileira à Civilização, na mesma medida que na Rússia a literatura, a dança, a grande música. A democracia se foi em 64, voltou, está em risco, mas o Império Musical brasileiro permaneceu se desenvolvendo e criando a cada geração de artistas uma utopia de Brasil. Virou uma linguagem brasileira e, como se vê, internacional.

O CD “On The Way From Brazil – A Bossa Russa De Oleg Tumanov” é mais que uma prova da perenidade do Brasil como um império musical, já passados tantos anos de sua fundação: é um reencontro contemporâneo com seus fundamentos, estabelecidos naqueles sete anos entre a década de 50 e 60 do século passado, mas devidamente atualizados. São 13 temas de bossa nova compostos por Tumanov que, a despeito de alguns terem letras em russo ou inglês, receberam letras novas e originais em português do compositor carioca Mauro Aguiar. O resultado, surpreendente sob qualquer aspecto - da sua fidelidade ao espírito original, ao mesmo tempo que por sua atualidade - são canções que renovam a linguagem da bossa nova: em vez da utopia do tempo em que ela surgiu, inspiradas nos grandes clássicos do gênero as canções refletem o momento de crise de identidade em que vive o Brasil de hoje.







Do seleto grupo de parceiros de Guinga, e um dos principais letristas da rejuvenescida cena da canção brasileira, Mauro Aguiar recebeu de encomenda fazer letras para canções de bossa nova. Estudou profundamente seus temas e vocabulário, seu cancioneiro, mas também teses e reflexões sobre ela. Percebeu ali um caminho para a renovação: “Entendi então que deveria permanecer na bossa nova, mas uma bossa nova deslocada dos tempos de utopia brasileira, aquele país esperançoso dos Anos JK, para o tempo da distopia que nos atravessa. Então, acabaram saindo essas letras de bossa nova para um tempo de distopia”, diz Mauro.

Assim, um samba de exaltação ao Rio, como tantos da bossa nova, vira “Escapatória”, a busca de uma nova utopia de lugar: “Vamos fugir, vamos agora/Vamos correr o mundo afora/Por aí, sem direção/Vamos sumir daqui”, devidamente localizada mais no tempo que no espaço, “Um tal lugar que nos dá guarida/Zona Sul que eu nem sei se há/Mas ante um tempo que tudo turva/Temos que encontrar”. Uma exaltação à mulher, pós-Garota de Ipanema, sai da mera contemplação da beleza e transforma-se na admiração da moça livre e feminista em “Ela só veio ver o mar”: “Mas olha lá/Ela só veio ver o mar/Olha o jeito dela andar/Ela sabe onde bem pisar/Mas olha bem/Olha dentro do seu olhar/Se é para gente admirar/Ou deixar ela se deixar pra lá/Olha só/Olha lá/Respeita a menina que vem lá”. A mais ousada de todas, a valsa em 6/8 “Elenova”, usa vocabulário de inspiração russa para flagrar uma nova garota de Ipanema desta vez militante política de esquerda, como muitas moças e rapazes da Zona Sul de hoje: “Ela é brusca/Diz que o país moscou/Mas insiste/Maloca o molotov no meu Gol/E malgrado o tempo que se arriscou/Eu gosto dela/E até na Sibéria por ela eu vou/Presta atenção/Vai durar esta noite/Pega a canção/O martelo e a foice/Pega o que der e vem/E ninguém/Larga a mão/De ninguém”.

No espírito dessa Bossa Nova contemporânea e ousada, o disco foi gravado no Brasil, mais apropriadamente em Copacabana, berço da bossa, no estúdio Companhia dos Técnicos, basicamente por músicos brasileiros de sopros e cordas, violão (Bernardo Ramos), piano (Eduardo Farias), baixo (Jefferson Lescowich) e percussão (Dada Costa), e alguns poucos músicos estrangeiros, como o pianista russo Alexey Podymkin, o saxofonista francês Baptiste Herbin, o também saxofonista Idriss Boudrioua e o baterista Emile Saubole, ambos franceses radicados no Rio, com arranjos e direção musical do brasileiro Rafael Rocha, numa jogada tão brasileira e cosmopolita como a bossa nova.

Para interpretar as canções originais de Oleg Tumanov e Mauro Aguiar um estelar, mas principalmente significativo grupo de cantoras e cantores brasileiros, representantes do que há de mais legítimo na atual canção brasileira. Dos filhos diretos da bossa nova, a representante é Joyce Moreno, que abre o disco injetando suingue no sambaço “Escapatória”, e lirismo leve e humorado na metalinguística “Uma nova canção” que, a partir de uma das músicas que espalhou a bossa nova no mundo, “Manhã de carnaval” (de Luiz Bonfá e Antônio Maria para o filme “Orfeu do carnaval”), fala da dificuldade de se perceber o novo na canção brasileira: “Mas vê que a canção revisita a bonita manhã/Que só por amor meu amor procurava/Invente uma voz dentro da solidão/Vá por nós, ouça seu coração/Vai que alguém gosta e grava”.

Dos artistas que vêm renovando a bossa nova nas últimas décadas em interpretação e composição, estão no disco Leila Pinheiro (“Só com você” e “Viagem do Brasil”) e Celso Fonseca (“Ela só veio ver o mar”). Paulinho Moska emula um crooner das noites de Copacabana ou dos balneários russos do Mar Negro no dançante samba canção “Bar negro”, e um cantor pop brazuca em busca de sucesso nas plataformas de streaming em “O amor é isso: “ Assim tá muito bom, amor/Vou aumentar o som/Só pra te ver melhor/Parada de sucesso/Tão fácil/Tão fácil/Tão fácil/Um negócio!”. Jane Duboc esbanja técnica e emoção para fazer a beleza triste de “Outono do Rio” voar como que num rasante pela Lagoa, e corta os pulsos na balada “Não disse adeus”, inspirada em clássicos dark da bossa nada solar, como “É preciso dizer adeus” (Tom Jobim e Vinicius) e “Pra dizer adeus” (Edu Lobo e Torquato Neto). Paulista radicada no Rio, depois de lá fazer lindos trabalhos nos conjuntos de compositores notáveis como Eduardo Gudin, José Miguel Wisnik e Chico Pinheiro, Luciana Alves representa a nova geração da música brasileira. Encarna a rebelde “Elenova”, e dá voz à mais linda das canções distópicas do disco, “Elegia”, um lamento ao mesmo tempo pela perda de um amor e pela perda de um país: “Não/Não haverá outro verão/Cais/Cai sobre nós/A paz sem voz”, em referências que vão da bossa tradicional até outras da canção carioca, com “Paz sem voz”, do Rappa.

O disco é tão de bossa nova que flerta até com seu irmão, o samba jazz, também devidamente atualizado em temas instrumentais como “Sunny Rain” e “Rio”.

Oleg Tumanov não caiu de paraquedas na Guanabara. Antigo admirador da música brasileira e latina em geral, já fez um disco de tangos, “Last Love Tango”, e outro em que mergulhava nas músicas brasileira e cubana, “Rio-Havana” com participação dos brasileiros Emilio Santiago, Leny Andrade, Wanda Sá e João Donato, além dos cubanos Chucho Valdez e Armando Cantero. “Uma Nova Canção”, cantada aqui por Joyce, foi gravada instrumental originalmente por Chucho Valdez sob o título de “Latin Romance”, justamente em “Rio-Havana”.

O espírito da música brasileira, na verdade do Império Musical brasileiro tão presente no ouvido internacional, ficou tão impregnado em Tumanov, que talvez só isso explique a identidade de seus temas com as letras de Mauro Aguiar e com a performance dos músicos brasileiros. Compositor e letrista fizeram todas essas canções sem se conhecer, como que telepaticamente, ou melhor, no exercício da linguagem já muito estabelecida da música brasileira. O que torna ainda mais surpreendente e comovente a canção que encerra e dá título ao disco na interpretação sincera e sentida de Leila Pinheiro, “Viagem do Brasil”, uma espécie de novo “Chega de saudade”, como a bossa de sempre alegre e triste, como a bossa de hoje distópica mas  desejando a utopia: “A possibilidade/De uma nova humanidade/Ai, que saudade grande do Brasil/Força de vontade/Bossa, cor, diversidade.../ Eu morro de saudades do Brasil/A cordialidade/E uma doce insanidade/Que saudade enorme do Brasil/Meu Deus...”.

Saudade que talvez se mate pelo desejo de um russo de estar neste lugar inventado pela música.


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