[News] Lançamento: escritora paulistana Viviane Ka apresenta, no dia 7, o livro “Um Quarto em Cavala”, na quarta edição do evento em São Francisco Xavier

“Em Um Quarto em Cavala, a viagem é apresentada como uma condição inevitável da existência humana, na qual a verdadeira liberdade só é alcançada ao aceitar-se como parte do mistério.”

Texto de orelha assinado pela escritora Renata Py “Um quarto em Cavala”, novo romance da paulistana Viviane Ka (@vivianekah), parte de um evento traumático para abordar, por meio de uma viagem, o desejo por transformação e a busca por uma identidade. É um livro que celebra a liberdade.

Lançada pela editora Laranja Original (208 págs.), a obra se destaca também pela curadoria de paratextos, todos assinados por mulheres escritoras: Maraíza Labanca e Isadora Krieger apresentam esse livro ao mundo a partir de suas leituras.

Escrito em fragmentos que mesclam diário de bordo, poemas, relatos oníricos e cartas, o romance se constrói na travessia — interna, simbólica, histórica. A estrutura híbrida reflete o modo como a protagonista, Vita, tenta reconstruir a si mesma a partir da ruptura: um assalto que a esvazia e provoca uma profunda sensação de desconexão. O gesto da partida é simultaneamente fuga e busca. Ao partir, juntando as economias que fez para morrer, Vita cumpre uma dívida consigo mesma: encontrar sua voz poética. Na reinvenção de si deslocada de sua paisagem cotidiana.

Cavala, cidade grega que acolhe a protagonista em uma residência artística, surge como espaço-labirinto, espelho da interioridade fragmentada. A paisagem mediterrânea, os deuses antigos, os mitos femininos, os encontros com personagens como o dono do mercadinho Laikis, o atendente Thanis, o pintor Christian, o ator romeno e, sobretudo, a evocação de figuras fantasmáticas como a mítica Ísola, constroem um universo que convida ao mergulho: o escrever enquanto se vive.

Na quarta capa, a escritora Isadora Krieger celebra o livro afirmando que ele é “de muitos azuis, marítimo, mítico, feminino, fundo”. Seu texto abarca a profundidade da trajetória da protagonista Vita para dentro e para fora de si. Para ela, esse é um livro que reconhece as tantas mulheres com o rosto diante do abismo e, ao mesmo tempo, única, a ilha dentro de nós. Já a doutora em literatura Maraíza Labanca aborda, no posfácio, uma visão psicanalítica do cavalo: é o cavalo que sabe para onde conduz quem o monta, como símbolo do inconsciente, assim como o mar.

A narrativa propõe uma reflexão profunda sobre os caminhos que se bifurcam entre a solidão e o pertencimento, entre a voz interior e os ecos de mulheres — artistas e mitológicas — que deixaram suas marcas no tempo. Ao se encontrar com essas vozes, Vita descobre que sua travessia não é apenas uma fuga, mas um rito de iniciação. A viagem transforma-se, assim, num fio condutor, no gesto criativo como forma de refúgio e resistência.

Entre deusas e poetas: a importância da representação das mulheres

Afrodite, Pandora, Antígona, Perséfone, Selene: todas essas figuras mitológicas orbitam o texto, assim como as poetas gregas Safo e Maria Polydouri. Ao mesmo tempo, há uma mulher viva, no presente, tentando escrever, sobreviver, amar e continuar. “Um Quarto em Cavala” é também um romance de amizade entre mulheres, como mostra a relação com Christina, residente que compartilha dores e forças. Juntas, erguem uma ponte feita de escuta, solidariedade e reconstrução.

Viviane Ka sublinha a importância da representação e do símbolo ao evocar deusas e poetas — gesto que não acontece por acaso. As mulheres sempre estiveram no centro de suas pesquisas. Em São Paulo, foi idealizadora do Eugênia Café Bar, espaço feminista que abrigava uma biblioteca de autoras e promovia rodas de conversa com escritoras e leitores

A “Poeta Desconhecida” — figura que perpassa o livro — é símbolo dessa ancestralidade que o texto deseja desenterrar, nomear, reverenciar. A escrita, para Viviane Ka, é rito e reinvenção. E é também política: os poemas colados clandestinamente nas paredes de Cavala são formas de inscrever corpo e voz em paisagens marcadas pela ausência.

Em um dos momentos mais simbólicos da obra, Vita pergunta: "Como ser tão velha?", ao se deparar com um homem que parece o próprio tempo. A pergunta ecoa uma tensão entre o envelhecimento e a memória, entre os vestígios do corpo e a permanência da linguagem. Como ela mesma escreve: "Meu livro fala, de forma poética, em como podemos abrir uma janela em nossa vida e olhar para fora de nossos limites".

O símbolo do quarto como refúgio e expansão

Na obra, o quarto — símbolo consagrado por Virginia Woolf — adquire nova nitidez. Para a autora, as mulheres precisam cavar seu próprio lugar para exercer o ofício da escrita. “O quarto é refúgio e expansão”, diz ao comentar a atualidade do tema e a importância dada ao cômodo no novo livro da Miranda July e no último filme de Almodóvar. Ao fim, o quarto — espaço da escrita — torna-se mar, corpo, dança e rito. Como diz Vita: "tenho que morrer menos". A frase resume o desejo que atravessa o livro: transformar a ausência em presença, o silêncio em linguagem, a solidão em ritual coletivo.

Dividido em três partes o romance constrói uma odisseia íntima a partir dos dias cinzas iniciais até os dias azuis, amorosos. A estrutura reflete como o mergulho no mundo interior pode ser tão desafiador e não linear quanto uma viagem física, territorial. O novo espaço de existir, sugere o livro, só pode ser descoberto aos poucos, por meio da lenta retomada dos sentidos perdidos no ato da partida.

A obra conta ainda com ilustrações em cianotipia, que adicionam uma dimensão visual única e dialogam com o caráter introspectivo da narrativa, criando um contraste entre a leveza das imagens e a profundidade dos temas abordados, como as lembranças de infância e a falta da mãe. Essas ilustrações complementam a viagem sensorial de Vita, trazendo à tona novas camadas de significado, ampliando a imersão no livro.

Da mulher às mulheres: Viviane Ka tem uma estante feminina

Viviane Ka nasceu e mora em São Paulo. É escritora e produtora editorial. Atuou como editora em diversas casas editoriais paulistas. Foi fundadora da revista de literatura São Paulo Review e estreou na poesia pelas mãos do prestigiado editor Massao Ohno.

É autora dos livros “Triunfo dos Pelos” (editora Summus), “O Grande Livro da Comida” (editora Angra), “Tudo por um ídolo” (editora Paulus), “Dez mandamentos para a felicidade sexual da mulher” (editora Jabuticaba) e, agora, “Um Quarto em Cavala” (editora Laranja Original, 2024). Seus poemas também foram publicados nas revistas Ruído Manifesto e Antidot, na Romênia.

Entre suas principais influências estão escritoras que experimentam a linguagem: Hilda Hilst, Clarice Lispector, Marguerite Duras, Maria Gabriela Llansol, Maria Negroni, Sophia de Mello Breyner, Mar Becker e Isadora Krieger. Também cita Patti Smith, cuja forma poética e natural de narrar a própria história a toca profundamente. E completa: “Gosto muito da Anne Carson, me identifico muito com seu livro ‘Autobiografia do Vermelho’, que também usa ensaio, prosa e poesia para recontar a história de uma personagem da mitologia grega”.

Confira o poema “A Mulher” (pág. 85):

Foi na fresta

de um terremoto silencioso

que foi parida A Mulher

de nenhuma mãe.

Boneca pornô criada para o desfrute.

Boneca de plástico

com a boca sempre aberta

para o grito que nunca vem.

Alimentou esta boca

com todas as sombras humanas.

Da caixa aberta,